Coluna Contraponto - Clique no LINK ABAIXO

domingo, 9 de novembro de 2008

"O que é prosperidade?"

por José Eli da Veiga*
Antes que alguma coisa possa ser medida, deve haver algum consenso sobre sua própria definição. Por mais lógica que possa parecer tal afirmativa, não é o que mostra a experiência, e mostra com fina ironia. Costuma ocorrer exatamente o inverso: a definição é que resulta do modo que acaba sendo selecionado e convencionado para se mensurar.

Caso patente é o da prosperidade, valor comum a amplíssima gama de sociedades e culturas, oqual só foi consensualmente definido no chamado Ocidente em meados do século passado, ao serem adotadas nas Nações Unidas as convenções necessárias para o surgimento de um sistema padronizado de contabilidade nacional. E se o produto interno bruto (PIB) per capita emergiu como o indicador preferido, foi apenas porque uma opção muito melhor, como o produto nacional líquido (PNL), envolvia sérios obstáculos para os cálculos estimativos das amortizações, sem que apresentasse evolução discrepante. Para que complicar, se o nacional líquido mudava em paralelo ao interno bruto?

Todavia, com a intensa globalização e a expansão do setor terciário, tal paralelismo deixou de existir. Além disso, as crescentes preocupações ambientais não mais permitem que se ignore a depreciação do patrimônio natural. Então, mesmo que a prosperidade continue a ser definida pelas contas nacionais (o que não é fatalidade), será inevitável a substituição do PIB por um indicador que poderá ser apelidado de "PNL verde". E, mesmo assim, nada garante que tal medida possa realmente revelar aquilo que está no âmago da idéia de prosperidade: a melhora real da condição de vida das populações.

Essas foram algumas das razões básicas que levaram à identificação dos nove desafios a ser enfrentados pelo grupo de trabalho presidido por Enrico Giovannini, chefe da área de estatísticas da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), um time encarregado de abordar "clássicos problemas do PIB", o primeiro dos três temas em torno dos quais foi organizada a chamada Comissão Stiglitz - Comissão sobre a Mensuração do Desempenho Econômico e do Progresso Social (CMDEPS):
1) Migrar do PIB para a renda real líquida disponível para o conjunto da economia e para os domicílios, levando em conta depreciações, depleção dos recursos, degradação ambiental e transferências dentro e fora da economia, assim como índices de preços apropriados;
2) Calcular a renda real disponível por unidade de consumo (domicílio corrigido) para diferentes grupos de renda e comparando médias a medianas;
3) Para saúde, educação e outros serviços não-mercantis, inclusive os garantidos pelo governo, obter medidas de volume e de preços baseadas em outputs;
4) Comparar a rendas aos ganhos e perdas de capital;
5) Considerar o trabalho doméstico não-remunerado, inclusive em termos de desigualdades;
6) Comparar trabalho doméstico não-remunerado e lazer;
7) Considerar a educação como bem de investimento para a construção de capital humano, assim como sua depreciação;
8) Avaliar a segurança, particularmente quando garantida pelo setor público;
9) Considerar todas as despesas defensivas, inclusive gastos privados com segurança.

De forma tão telegráfica, esses nove pontos não podem dar ao leitor uma boa idéia das tarefas do grupo. Mas eles certamente são suficientes para que se perceba qual é o grau de consciência sobre o anacronismo da identificação da prosperidade com o PIB per capita. Pelo menos entre os estatísticos e os economistas que elaboraram a lista. Agenda de trabalho que também parece anunciar uma eventual redefinição de prosperidade, não mais vinculada exclusivamente a avaliações de desempenho econômico, mas também aos benefícios que dele se espera em termos de "qualidade de vida".

É claro que essa alternativa não poderia ser o atual Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), o indicador concorrente que obteve legitimidade. Principalmente porque uma de suas três dimensões é justamente aferida por versão ligeiramente corrigida do próprio PIB per capita, o que reproduz todos os problemas citados. É por causa disso que o IDH chega a sugerir a existência de um mesmo grau de prosperidade em situações tão simétricas quanto a dos Emirados Árabes Unidos (EAU) e a do Chile, classificados em 39º e 40º lugares entre os países de mais alto desenvolvimento no último Relatório de Desenvolvimento Humano, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). De fato, em 2005 esses dois países empatavam na esperança de vida ao nascer: 78,3 anos. Mas o Chile estava muito mais avançado em termos educacionais, com 83% de escolarização, contra apenas 60% nos EAU. E, mesmo assim, foi o IDH dos Emirados (0,868) que ficou ligeiramente superior ao do Chile (0,867), por terem mais do que o dobro de PIB per capita: US$ 25.514 contra US$ 12.027 PPC.

Sabe-se que o Pnud está empenhado em profunda revisão das metodologias utilizadas nos cálculos de seus índices, para que a partir de 2010 o desenvolvimento, a pobreza e algumas desigualdades venham a ser aquilatados de forma mais razoável. Pode-se esperar, então, que seus técnicos tirem grande proveito do relatório final da CMDEPS, que deverá estar pronto em meados de 2009. E que ainda antes também possam se beneficiar dos resultados de um ambicioso projeto do governo britânico, cujo propósito explícito é redefinir a prosperidade.

Forçoso constatar, portanto, que não há resposta simples, e muito menos definitiva, para a indagação que intitula este artigo. O que as ponderações acima parecem evidenciar é a importância que poderia ter um acompanhamento sistemático desses trabalhos por uma rede que viesse a se formar no Brasil, articulando pesquisadores das universidades e do sistema nacional de estatísticas liderado pelo IBGE. Para observar não apenas as três já mencionadas iniciativas oficiais, como também duas bem mais antigas: a ONG Redefining Progress, dos EUA, que já tem quase quinze anos e cuja missão é redefinir o progresso, e o coletivo associativo Collectif "Richesses", fundado há oito anos na França, voltado para a reconsideração do que se entende por riqueza

Nenhum comentário: