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sábado, 31 de outubro de 2009

Bianca / Zé / eu

por Rosana Caiado em 19/10/2009 | 15:25
Vamos chamá-la de Bianca. Há um homem, sempre há. Vamos chamá-lo de Zé, ainda que todos sejam. Biancas sempre rezam por Zés, emagrecem, noivam, gastam tempo, dinheiro e sonhos com Zés. Sobretudo, choram por Zés. Bianca se descabela.
Zé não está interessado em assuntos mundanos / salário mínimo / paz na Terra / canastra real / previsão do tempo para o fim de semana. Não sei ao certo o objetivo de Zé. Não aparenta ter a ver com Bianca.

Há pilhas de roupas dobradas em cima da cama estreita, coberta por lençol de linho. Bianca quer deitar e chorar rios, mas hoje é dia de passadeira. Empurra quatro ou cinco meias soquetes, calças, camisetas velhas e faz de travesseiro as calcinhas rendadas. Encosta-se na parede gelada e soluça abafado. Bianca tenta esconder, mas eu percebo que está chorando.
Em momentos como esse, seria bom ter alguém para abraçar: urso de pelúcia / garrafa de cachaça / cartas não-respondidas / as próprias costas - qualquer coisa. Bianca agarra-se à caixa de lenços descartáveis. O quarto de Bianca lembra o de um hotel. Bianca vê o vazio / o branco / a solidão / duas horas antes da morte: quatro paredes, chão de mármore, não há porta ou janelas, apenas nuvens de algodão. Vai chover nos delírios de Bianca.
Senhores e garotas fazem caminhos Escherianos, em passos coreografados. Usam macacões de astronauta, vestidos de noiva, chapéus de mestre-cuca, jalecos de médico e nem é Reveillon. A cada meia hora, olham para trás e conferem a posição de Bianca. Ela faz sinal de positivo com o polegar, apesar de cada vez mais distante, pregada no chão. Está descalça.
Bianca dorme depois que virou o dia, em suaves prestações. Nos pesadelos, gelo seco. Quer gritar e perde a voz. Toma um susto e chama pela mãe, que não escuta.
Dentro da cabeça oca de Bianca, cenas se reprisam. Pouca ação, três ou quatro personagens. Ela é a mocinha massacrada. Morre no final - quem não? Zé é o galã. Zé não gosta de samba / não usa relógio / não faz a barba / nem mata barata.
Bianca evita falar com pessoas / plantas / poodles / santos milagreiros / senhoras no ponto de ônibus. Bianca não está para conversa. Recusa ajuda para descer do barco / pagar as contas / carregar sacolas / entender o mundo lá fora. Bianca diz “não preciso disso”. Os problemas de Bianca são maiores que os dos outros / maiores que o Pico Everest / do que uma jaca madura / a desbotada Tijuca. Bianca usa lente de aumento.
Bianca chora. Pede pelo amor de Deus. Não sabe de nada.
A vida seria melhor se fosse a dois / se viesse com porção extra de catupiry / estivéssemos nos trópicos / durasse menos / todos os dias fossem amanhã.
Eu já vim aqui uma vez / duas / semana passada / de metrô / com o Zé. Parece que essa será a última, mesmo depois de tantas vezes ter disparado alarme falso.
Lágrimas escorregam pelo rosto alvo de Bianca. Ela pesca a última com a língua e engole. Bianca deita no chão, abre os braços e vira as palmas das mãos para baixo. Olha para o lado esquerdo e jogas as pernas flexionadas para o direito, em posição de alongamento.
Bianca quer se desintegrar / quer que tudo mais se exploda / bum / pular de bungee jump com fio de seda / tomar um copo de Molico com cicuta. Bianca não quer deixar rastros / filhos mijados / corações partidos / tanque de roupa suja pra lavar. Prefere ser dada como desaparecida e figurar no jornal local, foto 3×4, dentes de leite.
Treze é o número da sorte de Bianca. Na décima terceira pílula goela abaixo, enfim, me vê pela primeira vez. Olhos quase fechados, me enxerga pela fresta. Assusta-se. À primeira vista, costumo ofuscar. Ela perde os sentidos, me dá a mão e vamos.

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