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domingo, 12 de abril de 2009

Mentiras sobre Che me levaram a escrever sobre meu amigo de infância.

Ernesto prometeu que dentro de um ano terminaria as 12 matérias que faltavam para se formar na faculdade de medicina. Em seguida, partiriam. O amigo duvidou, debochou e esqueceu o assunto, mas quando viu a promessa cumprida dentro do prazo estipulado, não ousou fugir. "Não era a primeira vez que Ernesto me desafiava, e eu nunca havia amarelado", explica Calica. Foi assim, como um desafio maroto entre grandes amigos de infância, que começou a segunda aventura de Ernesto Guevara de La Serna pela América Latina, em julho de 1953. Desta vez, ao lado daquele que o conheceu aos quatro anos nas festinhas da cidade serrana de Alta Garcia, na Argentina: Carlos "Calica" Ferrer.
"De Ernesto a Che: a segunda e última viagem de Guevara pela América Latina", de Carlos Ferrer


Ernesto, que já havia percorrido as terras sul-americanas ao lado de Alberto Granado (como retratado no filme "Diários de Motocicleta", de Walter Salles), embarcou com Ferrer em um trem da estação Retiro, em Buenos Aires, rumo à efervescente Bolívia da pós-revolução do movimento de esquerda de 1952. Passaram pelas mãos da feroz ditadura peruana do general Odría, antes de se separarem no Equador.

A viagem, que transformaria o jovem médico Pelao no comandante da revolução Che, é relatada pela primeira vez - e pela grande testemunha da história - no livro "De Ernesto a Che", que acaba de ser lançado no Brasil. Nele, Calica fala sobre o amigo "de carne e osso", desmente "verdades" com o olhar de quem acompanhou tudo muito de perto e descreve com admiração a passagem do companheiro de partidas de futebol e badernas na escola e de noitadas e mulheres, para o homem inconformado com as injustiças sociais da América Latina.

Para quem segue a trajetória do guerrilheiro pela tela do cinema, o livro preenche a lacuna entre a primeira aventura, mostrada em "Diários de Motocicleta" (2004), de Walter Salles, e a luta à frente da revolução, retratada em "Che" (2009), de Steven Soderbergh.

A segunda viagem, descrita no livro, começa um ano depois da retratada em "Diários de Motocicleta" e termina em outubro de 1953, há quase 56 anos, quando Calica se despede de Ernesto "com um tchau e um abraço curto". Ele nunca mais voltaria a ver o amigo, que, a partir daquele momento, seguia seu caminho como Che até a sua morte.

Em entrevista ao UOL Notícias, um Calica de 80 anos, que hoje vive em Buenos Aires, conta quem é Ernesto Che Guevara longe do mito ou da foto enigmática que estampa


UOL Notícias - Como foi passar a infância e a juventude ao lado do Che? Quem era o Ernesto?
Carlos Ferrer - Eu sinto um grande orgulho dele e às vezes me sinto um pouco triste por pensar que não tenho mais meu grande amigo. Conheci o Che quando ele tinha quatro anos. Ele se mudou para Alta Garcia, uma província de Córdoba cujo clima era adequado para a asma dele, e meu pai foi o primeiro médico que o atendeu. Nossas famílias ficaram amigas e por toda nossa infância e juventude estivemos muito próximos.

Depois, quando mudamos para Buenos Aires para terminar o ensino secundário, a amizade continuou. Até que, aos 21 anos, ele fez a viagem que foi retratada em "Diários de Motocicleta". Quando ele voltou, completou as matérias da faculdade de medicina que faltavam e, em seguida, saímos rumo a Caracas (Venezuela), onde morava Granado, passando por Bolívia, Peru e Equador. Era dia 7 de julho de 1953.

UOL Notícias - Como foi separar-se de Che?
Ferrer - O destino meteu as mãos e não chegamos juntos a Caracas. As coisas não coincidiram... Che pegou um barco para o Panamá, para chegar à Guatemala socialista, e eu fui para Quito.

Em Guayaquil (Equador), estávamos totalmente sem dinheiro. Então, quando recebi uma proposta para jogar futebol em um clube de Quito, falei com Che, mas ele preferiu ficar esperando uma embarcação que o levasse até o Panamá, enquanto eu ia até Quito ver se o futebol dava certo. Dias depois, ele mandou um telegrama dizendo que havia chegado ao Panamá com (Eduardo "Gualo") García (companheiro de Calica e Che, junto com Oscar "Valdo" Valdovinos, Andro Herrero e Ricardo Rojos, nos tempos de Guayaquil).

(Pausa) Meu destino era Caracas... Separamos-nos, mas ficou a lembrança de que conheci a Bolívia junto com Che, o lugar onde ele seria assassinado em 1967. Na época em que estávamos em La Paz, o jovem advogado Fidel Castro tentou tomar o quartel Moncada em Cuba. Era 26 de julho de 1953, data que deu nome ao movimento revolucionário cubano. Quer dizer, era praticamente o começo da revolução.
Na mesma piscina do Hotel Sierra, Calica é abraçado pelo filho de Che, Camilo Guevara March


UOL Notícias - O sr. chegou a se arrepender de ter tomado outro caminho?
Ferrer - A separação foi circunstancial, não foi planejada. Quando saímos juntos da Argentina nos comprometemos a não deixar o outro para trás, a não pedir ajuda, nada. Sempre que podíamos nos comunicávamos com nossas mães, que conversavam uma com a outra, para mostrar que não estávamos mortos de fome. As poucas fotos que se salvaram da viagem, e que aparecem pela primeira vez no meu livro, foram as que mandamos para as nossas mães por carta. Enfim, havia uma relação estreita, não houve briga, como foi cogitado.

UOL Notícias - Quando Che te propôs a viagem, já dava para notar uma intenção maior? Uma busca por respostas sociais e políticas?
Ferrer - Sim, claro. Ele era muito inquieto, queria conhecer tudo. Ernesto, antes de fazer as viagens com Granado e comigo, já havia feito uma viagem sozinho pela Argentina, quando teve contato com a miséria, a fome, o abandono. E depois, durante a viagem com Granado, constatou que era assim por toda a América. Então, ele já estava empenhado em pensar no que fazer para mudar tudo isso. Não encontrava a solução, aliados confiáveis... Por isso, quando conheceu Fidel Castro, acreditou nele e embarcou no movimento.

UOL Notícias - Para o sr., quando Ernesto começou a se transformar em um líder revolucionário?
CF - Ele buscava moldar-se com a viagem, claro. Mas ele se transforma no Che no momento em que conhece Fidel e embarca no Granma (iate que levou Fidel, Che e 80 revolucionários do México até as praias cubanas, em 1956, no início do levante armado contra o ditador Fulgencio Batista).
A última foto que Che (e) e Calica tiraram juntos. "A foto foi batida na Bolívia, onde 14 anos depois ele foi fuzilado", conta Calica no livro


UOL Notícias - Como foi ver a Revolução Cubana de fora?
Ferrer - Eu sou um devoto, um partidário da revolução, que foi um salto histórico de quase cem anos na educação e na sanidade de Cuba. Talvez a população de lá não tenha as comodidades que existem em outros países, mas tem, em contrapartida, acesso à medicina, coisa que 47 milhões de pessoas não têm nos Estados Unidos. Me sinto muito orgulhoso de saber que fui amigo deste grande comandante do exército revolucionário, que iniciou a Batalha de Santa Clara e que lutou com atos de heroísmo fantásticos. Admirei seu trabalho como ministro da Indústria, como presidente do Banco Central de Cuba. Admirei-o por seu trabalho nas missões internacionais, no Congo. Hoje em dia, sou seu admirador. Ele morreu na batalha, mas agora temos Evo Morales, Lula, Hugo Chávez, Rafael Corrêa e todos esses governos democráticos, que sofreram grande influência da Revolução Cubana e, logicamente, de Che.

UOL Notícias - E qual é a sua relação com Cuba hoje?
Ferrer - Fui três vezes a Cuba. Estive lá no final do ano passado para os 50 anos da Revolução Cubana e encontrei-me com o filho do Ernesto, Camilo, que cuida do Centro de Estudos Comandante Ernesto Che Guevara. Sou amigo da viúva de Che, Aleida, e de seus filhos, assim como ainda sou amigo dos irmãos dele que moram em Buenos Aires. Também fui encontrar-me com Granado para tratar do livro que estava escrevendo. (Alberto Granado mudou-se para Cuba logo após a revolução. Ele assina o prólogo do livro de Calica)

UOL Notícias - Como é a sua relação com Granado hoje?
Ferrer - Fantástica. Somos amigos íntimos e nos gostamos muito. Estamos planejando escrever um novo livro juntos, os dois amigos mais importantes que teve Ernesto antes de virar Che. Temos muitas coisas para contar, recordar e analisar sobre tudo o que aconteceu. Espero que o tempo e a morte nos permitam terminá-lo (risos).

UOL Notícias - Como o sr. se sente diante das outras obras publicadas a respeito do Ernesto e dos filmes que fizeram sobre ele?
Ferrer - Recentemente, quando começaram a filmar "Che", (o ator e protagonista) Benicio Del Toro veio aqui e ficamos amigos. Ele me perguntou muitos detalhes da personalidade do Ernesto, se era parecido com ele... Eu lhe disse que sim, que o único problema era a altura. Benicio tem 1,95 m e Che media 1,73 m. Mas isso o cinema soluciona... Além disso, emocionei-me vendo "Diários de Motocicleta" e colaborei em quase todos os livros escritos sobre o Che. Primeiro, em "Meu Amigo Che", de Ricardo Rojos, que foi nosso companheiro em Guayaquil. Depois, no livro que escreveu seu pai "Meu Filho Che" e na biografia escrita por Jon Lee Anderson.

UOL Notícias - Por que o sr. demorou 52 anos para publicar um livro sobre a viagem e a amizade com Che?
Ferrer - Porque, no começo, não podia imaginar explorar minha amizade com ele. Mas quando comecei a ver as mentiras que diziam sobre ele... E quando meus amigos começaram a dizer que era minha responsabilidade escrever sobre ele e sobre a nossa amizade desde a infância... Granado mesmo dizia: "Calica, você tem que escrever sobre essa segunda viagem, porque ela é muito importante". Então as coisas foram caminhando.

UOL Notícias - Como foi o processo de construção do livro?
Ferrer - Facilitaram-me as coisas para eu escrever o livro. Constanza Brunet, que é a diretora da minha editora, me deu uma mão, gravou a história que eu contei durante quatro dias e depois fomos transcrevendo e dando forma.

UOL Notícias - O sr. também tinha um diário? Como se lembra de tantos detalhes depois de tanto tempo?
Ferrer - Não, quem tinha diário era Ernesto! Eu sempre tive dificuldade para escrever... Me lembro das coisas, porque tenho é muito boa memória... Com todo o respeito ao Che.

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