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terça-feira, 21 de abril de 2009

O DERRADEIRO CHUTE NO BALDE

Furio Lonza

Foi na segunda metade da década de 90 que o mundo se tornou refém de si mesmo. Pode ter sido um pouco antes ou um pouco depois, vai saber. Eu, pelo menos, só percebi isso com clareza quando a tecnologia construiu uma superestrutura para se proteger. Ela é auto-sustentável, indestrutível e retroalimentável. Uma espécie de moto perpétuo do controle urbano global.

Com o fim da polarização ideológica, houve o imediato desequilíbrio de forças e os países vencedores passaram a dar as cartas e monitorar a geopolítica do planeta. O tripé capital-consumo-lucro fica mais sólido que nunca. As pessoas são viviseccionadas, catalogadas, arquivadas. Elas perdem a identidade própria. Anônimas, fazem parte de estatísticas. Termina a iniciativa privada, os grandes conglomerados se aliam e dominam o mercado. A competição é de fachada. Qualquer atitude contrária ao sistema é neutralizada & absorvida. A democracia, como na Grécia antiga, é um tapume que serve apenas para encobrir gestões arbitrárias & truculentas. A ciência está a serviço da manutenção do status quo. De tempos em tempos, reuniões de cúpula resolvem incrementar essa solidez e, eventualmente, mudar o rumo, mas tudo dentro de uma globalidade consentida.

Tudo está previsto. Tudo está sob controle. Tá tudo dominado. Tanto faz se alguém protesta. Até a violência é assimilada. Passeatas, carros revirados, greves, lojas incendiadas, faixas nas ruas, marchas coletivas, invasões de terras. Sindicatos, entidades de classe, agremiações. Tudo fica sem sentido, à deriva. O sistema perdeu o amadorismo de antigamente. Agora, ele se profissionalizou. Lá se foi o tempo em que uma música de John Lennon contra a guerra do Vietnã conseguia intimidar o presidente Nixon, por exemplo, obrigando-o a sair da Casa Branca para dialogar com os estudantes amotinados.

Ficou mais difícil criticar a realidade. Mesmo porque a rapidez com que ela se modifica criou um obstáculo intransponível. (O futuro foi ontem.) Tocar na realidade hoje é a mesma coisa que tentar determinar a posição exata de um elétron no átomo. Quando você se dá conta da sua presença, ele já se foi, saiu rodando, está em outro lugar. Estamos num mundo volátil. Vivemos no éter. Nossos sentimentos são teleguiados à distância e dirigidos para qualquer instância lucrativa. Até nossas lágrimas são virtuais. Nos tiraram a capacidade de influir no nosso destino. Tudo vem de cima. Nossos rumos são resolvidos nas amplas salas com ar condicionado dos departamentos de marketing por engravatados executivos bissexuais. Demandas artificiais surgem: compramos coisas que não precisamos, trocamos bens de consumo que não nos serviam por modelos mais novos, vivemos uma vida que não é a nossa. A ausência de virtude, de ânsia, de vontade, de iniciativa é a tônica. A existência é tolerada. Todos podem emitir opiniões, mas ninguém apita mais nada.

Exercício de memória: qual a crítica mais popular ao comunismo, repetida à exaustão durante cinquenta anos, e que sensibilizou toda a população do mundo que prezava a liberdade? A perda da individualidade do cidadão. Ele viraria apenas um número, seria tragado para dentro de um Estado forte & burocrático, que se responsabilizaria pelos recursos materiais, em detrimento da liberdade de pensamento & ação. A direita se encarregou de divulgar essa ideia aos quatro cantos do mundo através da publicidade, da propaganda subliminar, de livros, de filmes. Pois bem, a capitalismo virou capitalismo selvagem que, por sua vez, virou neoliberalismo, que venceu a briga. Na verdade, o grande erro da esquerda não foi achar que o homem era apenas um cano que ia da boca ao cu. Foi dar, apesar dos pesares, educação & cultura a seu povo, mesmo que dirigida e dogmática. Foi um ato falho, um contra senso. Não previu a catástrofe. Deixou uma brecha. Qual foi o grande acerto do neoliberalismo? Mumificar o povo. Dopá-lo. Dirigi-lo e dogmatizá-lo para que se tornasse apenas e tão-somente um feroz consumidor, obsessivo e compulsivo. Ao não lhe dar educação & cultura suficientes para que percebesse essa manobra, fez com que o homem virasse um cano que vai da boca ao cu. Resumindo a conversa: não era crítica, era inveja. Enquanto a propaganda ideológica da esquerda minguava, a propaganda da direita se sofisticou de tal maneira que conseguiu enfim seu objetivo: dominar corações e mentes.

Em 1999, data limite em que Nostradamus previra o fim de tudo, estreava nos cinemas o filme Matrix, que escancarou sem meias tintas a cruel incapacidade que temos de monitorar nossa própria existência. Quando eu era pequeno, achava que nunca chegaria vivo ao ano 2000. Me parecia uma coisa inalcançável. Um número tão redondo que beirava a ficção científica. Pois bem, eu estava enganado. Não só cheguei lá, como ultrapassei minhas expectativas. Com um certo desapontamento, porém, percebi que o fim do mundo não viria com maremotos, cataclismos, trovões & relâmpagos, ciclones ou terremotos. Até entendo que essa iconografia pueril tenha ganhado espaço durante certo tempo na mais bizarra imaginação da humanidade, com certeza alimentada pelo livro mais sagrado que temos no Ocidente. O sol se torna negro, a lua se banha de sangue, línguas em brasa rutilantes e biformes aparecem nos céus. O grande dia da ira traz sete anjos batendo seus sete martelos nas sete bigornas dos sete castelos. Do chão, abrem-se grandes e insondáveis poços de abismos. Chuva de gafanhotos, chuva de escorpiões, chuva de enxofre, chuva de pedras. Dragões vermelhos com sete cabeças e sete diademas tocaiam-se pelas esquinas do mundo. A grande Besta, parecida com um leopardo, com pés de urso e boca de leão, afugenta os hereges, emitindo insolências & blasfêmias através de sua boca maligna.

Nada disso aconteceu. Tanto a bíblia quanto Nostradamus erraram longe no seu ponto mais nevrálgico. Na passagem para o novo milênio, nem um mísero meteorito correu os céus. No reveillon daquele ano, o sol se pôs como sempre e a lua surgiu na hora habitual. O Apocalipse, porém, de uma forma ou outra, apareceu e revestiu-se da forma mais irônica: o nada. O mundo e os seres humanos se tornaram nada. O fim do mundo é o nada, o vácuo, a não-existência, a dissolução total. Até certo ponto, a bíblia foi otimista: com o Apocalipse, tudo acabaria. A realidade se encarregou de desmentir categoricamente essa previsão: o nada vai continuar.

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