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domingo, 12 de julho de 2009

Mário Melo x Manuel Bandeira

O poeta, o jornalista e a estátua equestre



"O primeiro projeto do deputado Mário Melo aprovado na Assembléia Legislativa foi aquele que rendeu a mais retumbante polêmica em que o jornalista Mário Melo esteve envolvido.
A iniciativa regulamentava os Artigos 103 e 191 da nova Constituição de Pernambuco.
Na íntegra, estabelecia a nova lei:
"Artigo 1º - É expressamente proibido a autoridades do Estado ou dos municípios dar nome de pessoa viva a localidade ou logradouro, bem como a edifícios públicos, escolas, bibliotecas.
Artigo 2º - Compete à Assembléia Estadual, em leis qüinqüenais, nos termos do Artigo 103 da Constituição, designar os nomes das cidades e vilas, proibida a repetição de topônimos daquelas categorias já existentes em municípios brasileiros, bem como vedado o emprego de expressão composta de mais de três palavras e de vocábulos estrangeiros, dada a preferência à adoção dos indígenas.
Artigo 3º - Compete às Câmaras Municipais dar nome a logradouros.
Artigo 4º - É obrigatória a consulta ao Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano, quer na hipótese do artigo 1º, quer na dos 2º e 3º, respeitando-se o parecer do órgão consultor.
Artigo 5º - Caso ao fim de trinta dias não haja o Instituto se manifestado contra o nome em causa, valerá o silêncio por aprovação.
Artigo 6º - O Governador do Estado, na hipótese dos Artigos 1º e 2º, e os Prefeitos, na do Artigo 4º, reverão a toponímia, no sentido de anular os atos posteriores à Constituição de 1947 em desobediência ao Artigo 191.
Artigo 7º - Revogam-se as disposições em contrário."
Tais disposições, regulamentando preceitos já constantes da nova Constituição Estadual, tocavam pontos caríssimos ao velho jornalista. Proibiam homenagens oficiais a pessoas vivas, uma questão de princípios para Mário, que costumava alertar para a transitoriedade dos sentimentos coletivos: o homenageado de hoje pode ser o execrado de amanhã, dependendo de mudanças no ambiente político ou social de uma época.
Também valorizavam o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, do qual o autor era secretário-perpétuo. A determinação de consulta obrigatória à entidade, quando se pretendesse homenagear um vulto histórico, além de já constar na lei matriz, era a forma mais objetiva, a seu ver, de garantir isenção às homenagens .
Por fim, a nova lei dava preferência a palavras indígenas na adoção de nomes de cidades e vilas, coibindo o estrangeirismo tão combatido pelo jornalista.
Na justificativa ao seu projeto, Mário Melo salientava:
"Procuramos, com o projeto, regular dois artigos da Constituição, de sábios preceitos. A legislação federal em vigor proíbe nomes de pessoas vivas, estrangeirismos, duplicatas na toponímia brasileira. A Constituição tornou obrigatória a consulta ao Instituto Arqueológico que, desde 1862, quando fundado, zela as tradições pernambucanas. Uma salvaguarda contra possíveis erros, ou possível injustiça, como, por exemplo, prestar homenagem a vulto que não mereça, ou atentado à tradição. Subentende-se que o pensamento dos constituintes não foi consulta inócua, pro forma, sim para ouvir um órgão técnico especializado e seguir-lhe os conselhos. Daí a necessidade de definição em lei."
Seria justamente essa questão da homenagem aos vivos o centro de um turbilhão, poucos anos depois, envolvendo políticos, intelectuais e jornalistas pernambucanos, em torno da figura venerável do poeta Manuel Bandeira.
Aconteceu em 1954. Mário Melo já não era deputado e tomara conhecimento de que a Assembléia Legislativa aprovara projeto de colocação em praça pública do busto de Manuel Bandeira, pernambucano radicado no Rio, autêntica celebridade literária. De sua coluna de jornal, Mário Melo abriu fogo contra a idéia, declarando-se "em permanente vigilância em defesa do preceito constitucional de proibição de homenagem, em praça pública, a pessoas vivas". Foi uma polêmica estrepitosa, que dividiu a intelectualidade e mobilizou a opinião pública da cidade. Defenderam a exceção da homenagem o jornalista e deputado Nilo Pereira (autor do projeto), o também deputado e jornalista Aníbal Fernandes, diretor do Diario de Pernambuco e desafeto de Mário por toda a vida, o sociólogo Sílvio Rabelo, o escritor José Césio Regueira Costa e outros, aos quais se juntaram, em declarações esparsas, gente do calibre de Jorge Amado, Rubem Braga e José Condé. Do lado contrário, Mário Melo sustentava, praticamente sozinho, a campanha de oposição à idéia. Embora não gostasse da poesia de Bandeira (jamais absorveu o Modernismo) e de ter registrado suas diferenças políticas com o vate, crítico do ex-interventor e ex-governador Agamenon Magalhães, seu amigo pessoal e correligionário, Mário Melo brandia com tal tenacidade o argumento da quebra do princípio constitucional que, embora sancionada pelo governador Cordeiro de Farias, a lei nunca foi materializada em bronze, até a morte do jornalista.
A polêmica se arrastou por cinco anos e sempre que alguém cobrava a colocação do busto, MM imediatamente sacava o argumento da ilegalidade, além do fato de a peça haver sido esculpida por um artista local, sem concorrência pública, e os ânimos dos homenageadores arrefeciam. Acusado, certa vez, por Aníbal Fernandes, de "rabulice e inveja", retrucou argumentando "que belo exemplo daria à mocidade das escolas (o secretário de Educação) se fosse empunhar a bandeira dum princípio contra a Constituição do Estado e associar-se à causa do gasto do dinheiro público numa obra em que foi proscrita, de início, a concorrência!" Em sua última crônica, redigida na madrugada em que foi abatido por um infarto e publicada um dia depois do seu sepultamento, Mário Melo ainda perorava:
"O poeta recifense, felizmente ainda vivo, Manuel Bandeira, vai breve ter seu busto num recanto do Jardim Treze de Maio, bem próximo do novo edifício do Instituto de Educação. Concedo apenas com esse 'breve', porque, como tenho escrito, o busto somente irá para logradouro público do Recife quando um de nós dois morrer; o poeta, porque desaparecerá minha oposição em defesa do preceito constitucional, ou o opositor, porque talvez ninguém levante a bandeira que ora empunho. E ambos maiores de 70 anos, estamos com os pés à beira do túmulo."
E assim aconteceu. Com a morte do jornalista, o busto do poeta foi posto em rua do Recife, pouco tempo depois. Assim como outro, do próprio jornalista, que além do mais virou avenida no centro da Cidade."

Em tempo: quando Mário Melo morreu, em 1959, o autor do seu necrológio, lido em plena sessão da Academia Brasileira de Letras, foi... Manuel Bandeira.
A quadrinha equestre nunca foi publicada pelo poeta, circulando apenas em meios restritos de amigos. Quem a guardou foi o professor Edson Nery da Fonseca.

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